sábado, agosto 05, 2017

Reféns do medo / Efeitos da violência na Paraíba.

Dados do programa “Paraíba Unida pela Paz”, do Governo do Estado, mostram que somente na primeira metade deste ano, 629 pessoas foram assassinadas no Estado. A Secretaria da Segurança não divulga os dados, mas o site “Onde fui roubado”, criado para catalogar os assaltos em João Pessoa, tinha até ontem, 763 notificações de roubos na Capital, que causaram um prejuízo estimado superior a R$ 1 milhão.

Além de estatísticas e prejuízos financeiros, a violência tem provocado doenças, algumas capazes de matar ou inutilizar as vítimas. Já se foram três meses e a atendente Raquel Alves do Nascimento, 28 anos de idade, não consegue voltar a ter uma vida normal e se livrar das sequelas que ficou após o último assalto que sofreu. Corre sem se dar conta quando ouve barulhos com qualquer semelhança com tiros, tem crises de choro a partir do nada, pânico de ficar filas, insônia e desconfia de qualquer pessoa que se aproxime. Esses são alguns dos sintomas que afetam pessoas com EPT. Uma doença que pode afetar pessoas que passam por qualquer episódio de violência e que pode levar a sequelas irreversíveis, se não for diagnosticada e tratada corretamente.

Raquel foi vítima de dois assaltos, no local de trabalho e está afastada das atividades há mais de um ano, sem previsão de retorno. O segundo assalto foi um episódio grave mas, para o psicanalista clínico, Tibério Pessoa, não precisa que a violência sofrida seja de alta complexidade. O alerta do especialista é para a possibilidade de sequelas que podem levar a problemas cardíacos graves, transtornos hepáticos e neuromusculares, podendo comprometer inclusive a capacidade de locomoção.

Vítima duas vezes
Trauma duplo. Atendente dos Correios sofreu com violência no horário de trabalho.

Raquel trabalha como atendente de agência dos Correios e Telégrafos. Em 2015 foi transferida para a agência de Sapé e, menos de um mês depois, o local foi assaltado. “Dessa vez eu não estava no balcão de frente e sim em uma salinha ao lado. Mas era bem junto e, de lá, eu ouvia os gritos das pessoas, conseguia ver o cara com a arma na mão. Ele ameaçou atirar na pessoa que estava no caixa e levou o dinheiro”, lembrou. Por conta desse episódio, ficou 60 dias em tratamento psiquiátrico, afastada do trabalho.

Em setembro de 2016 foi transferida para a agência de Itapororoca. Apenas seis meses depois, ela estava no caixa da agência quando chegaram dois assaltantes armados.

O desfecho da situação foi ainda mais tenso porque, segundo Raquel, a polícia chegou atirando em um dos bandidos. “Fiquei apavorada porque pensei que fosse um dos assaltantes atirando em alguém dentro da agência. Depois fiquei sabendo que um deles foi baleado e preso. O outro fugiu. Saí tão apavorada de lá que nem peguei meus pertences, que ficaram lá por quase três meses”, contou.

A partir do assalto, Raquel passou vários dias sem conseguir parar de chorar, o corpo trêmulo e sem dormir. “Eu ainda tinha a medicação que usei no tratamento anterior, mas nem com eles conseguia dormir. Sentia que tinha algo grave acontecendo, quando um dia ouvi um barulho que parecia um tiro e saí correndo sem me dar conta. Eu estava na sala, mas quando percebi já estava no quarto, deitada na cama. Como se a mente apagasse por alguns segundos e eu fosse levada pelo medo”, disse a atendente, que entrou em nova licença média, esta de um ano e dois meses, voltou ao tratamento medicamentoso e terapêutico.

Transtorno. Quatro meses se passaram do último assalto sofrido mas os sintomas persistem e ela fez mudanças em sua rotina. “Uma das primeiras coisas que fiz foi mudar de prédio, para um que tivesse portaria para dificultar o acesso de desconhecidos. Hoje, só de pensar na ideia de ter que voltar para o mesmo local de trabalho tenho crises de insônia, choro e ansiedade. Não consigo mais confiar nas pessoas, ficar em filas”, disse.

A atendente tem um o quadro que se encaixa na definição do transtorno do estresse pós-traumático (EPT). “É um desajuste sentimental entre o indivíduo e fato que gerou o desafeto. Tudo ocorre na matéria abstrata e subjetiva do cérebro, causando uma diminuição progressiva dos hormônios do bem estar e da felicidade. Não é o neurônio que está ruim e sim as ideias, que provocam estímulos no cérebro e consequente inibição dos neurotransmissores”, explicou o psicanalista clínico, Tibério Pessoa.

Sequelas graves e irreversíveis
Apesar de ser uma doença que acontece no campo das ideias, o transtorno do estresse pós-traumático pode deixar sequelas físicas graves, até irreversíveis, caso não seja tratado corretamente. “A pessoa é que determina quanto resultado terá o tratamento. Porque, apesar da ação do profissional e dos medicamentos, é preciso haver um movimento de dentro para fora e não de fora para dentro”, afirmou Tibério Pessoa ao falar sobre como tratar o EPT. Segundo ele, o juízo de valor que a pessoa faz da situação é que define a sequela que a pessoa terá ou não.

Nos casos de transtornos moderados e graves, a recomendação é que o paciente tenha pelo menos 12 meses de acompanhamento terapêutico. Nos casos graves, é necessária a interdição do paciente em todas as suas atividades, por um período a ser definido pelo psiquiatra. Entre as sequelas que podem restar de um EPT mal curado estão fobias, medos, tensão, distúrbios sexuais, como males psíquicos. “A doença psíquica é diferente em cada indivíduo. Tem a ver como a pessoa encara questões como espiritualidade, amor, afetividade e como vai analisar as situações. O juízo de valor que a pessoa faz da situação é que define a sequela que a pessoa terá”, explicou Tibério.

No físico, podem ocorrer sequelas como transtornos cardíacos, diabetes, doenças hepáticas e reumáticas. Estudos publicados na revista inglesa The Lancet, uma das mais antigas e conhecidas revistas científicas do mundo, publicada semanalmente, mostrou que pessoas com EPT têm 53% mais risco de eventos cardíacos. Segundo o periódico, o aumento da frequência cardíaca e a diminuição da variabilidade dela, combinados com transtornos do sono, além variações na pressão arterial, são alguns dos fatores que contribuem para a ocorrência de doenças do coração.

Trauma gera reações distintas nas pessoas
Diferente de outras doenças, o transtorno do estresse pós-traumático (EPT) não tem um padrão de manifestação. Tibério Pessoa explica que o resultado pode ser diferente entre duas pessoas, quando submetidas a uma mesma situação traumática. Uma delas pode desenvolver o transtorno, enquanto a outra pode nada sentir. Além disso, várias pessoas expostas à mesma situação, que desenvolvam o EPT, podem apresentar graus diferentes do transtorno.

“Tem a ver com o momento da pessoa, com o tipo de personalidade, se mais forte ou mais fraca, também se a pessoa já vêm ofendida de alguma outra situação.

Isso pode determinar se desenvolverá ou não o transtorno ou o nível de agravação do problema”, disse Tibério Pessoa.

Raquel nunca havia experimentado a sensação de ter problemas desse tipo. Mas vinha de uma sequência de assaltos, que foram cada vez se tornando mais próximos e graves, ao ponto em que ela se tornou alvo imediato dos bandidos. Jornal Correio