sexta-feira, abril 26, 2024

FALANDO DE CINEMA - ( DR . DEDÉ )

Tem dias que sinto uma necessidade imensa de escarafunchar o passado , e qual um arqueólogo do tempo , dar um mergulho na infância e adolescência em busca de histórias que vivi . Faço isso através do vídeo - tape da memória . Às vezes as imagens me aparecem amarelecidas e distorcidas pelo tempo , mas , sempre bem reais . Foi o que fiz há alguns anos , num desses domingos chuvosos que nos convidam à reflexão .
Existe um pequeno quarto em minha casa , que cognominei de Espaço Cultural , Cabine do Tempo ou Sítio Arqueológico . Nesse exíguo espaço de 12 metros quadrados , organizei em várias estantes de metal , parte de minha memória pronta para ser garimpada . O meu passado cristaliza - se sob a forma de discos de vinil , fitas cassetes , filmes antigos e eventos familiares gravados em fitas VHS e posteriormente gravadas em DVDs . Milhares de fotografias onde grande parte documenta o Carnaval de Itabaiana , principalmente o Bloco Nó Cego . Livros didáticos e de literatura , revistas antigas , recortes de jornais , estampas eucalol . Um aparelho de Som Antigo , que reproduz Vinis , CDs e Fitas Cassetes . Outro aparelho reproduz DVDs de filmes antigos que não tem mais em nenhuma dessas plataformas de Streaming .
Pois bem , num desses Banzos de que fui acometido , invadi meu Espaço Cultural , bati o pó , espanei a poeira do tempo , revi algumas fotografias , folheei alguns livros , documentos e coloquei um pouco de ordem em minhas
" raridades " . Finalmente ajustei a Radiola
( esse povo novo de hoje sabe o que é isso ? ) para escutar alguns vinis . Decidi colocar Trilhas Sonoras de Filmes Antigos . Dos mais de 4000 Vinis que possuo , escolhi uns 70 só de Música de Cinema . Preparei uma cachaça brejeira , um tira gosto à capricho e aboletei - me em uma cadeira como se meu Espaço Cultural , fosse a maior e melhor casa de espetáculos do mundo . Não havia nenhum espetáculo a apreciar . Apenas a vontade de vagabundear ou flanar como dizem os franceses , pelo passado através da música dos grandes filmes . Torna - se desnecessário falar sobre a beleza , qualidade e grandiosidade dessas músicas e dessas orquestras que marcaram gerações dos anos 40 , 50 e 60 . A beleza dessas músicas e orquestras , axezeiros fedorentos , pagodeiros anabolizados , sertanejos de boutique , forrozeiros de plástico , funkeiros de penitenciárias ou cantores e cantoras de " Vozes Anasaladas " , jamais entenderão ou apreciação .
Para meu deleite , meus ouvidos foram acariciados por pérolas do Cancioneiro Mundial , executadas por mestres da música como John William , Nino Rota , Henri Mancini , James Last , Mantovani , Ennio Morricone , Burt Bacharach , Hugo Montenegro , Orquestra da Rádio BBC de Londres e todo um Caleidoscópio de Orquestras e Coros do mundo inteiro , com os mais belos arranjos já produzidos para o Cinema . A genialidade humana sempre presente na composição e execução dessas músicas . Nada a ver com a falta de " alma " ou " identidade " das músicas produzidas por computadores .
Enquanto ouvia às músicas , lembrava o Cine Ideal de Itabaiana , o Cine São Pedro de Areia , improvisado em um galpão de fábrica , o Cine Rex , o Cine Municipal e o Cine Plaza em João Pessoa . Lembrava ainda , às feirinhas de picolés , roletes de cana , frutas , cachorro quente , sanduíche , pipoca , amendoim , milho assado e cozido , tapioca , pitomba e do
troca - troca de gibis na frente dos Cinemas .
Lembrava ainda e comparava os filmes que marcaram gerações com a quantidade de lixo que a Indústria Cinematográfica de hoje produz , salvo honrosas exceções .
Devo salientar , que boa parte dos conhecimentos que hoje tenho de história , geografia , povos antigos e contemporâneos foi por conta da pesquisa histórica que fazia , após assistir esses filmes épicos . Alguns exemplos seriam A guerra de Tróia , A queda do Império Romano , o Julgamento de Nuremberg , Guerra e Paz , os Trezentos de Esparta , o Colosso de Rodes , Spartacus , De Dunquerque a Hiroshima , Quo Vadis ? , Ben Hur , Os 10 Mandamentos e tantos outros que impossível seria lembrar .
Enquanto a manhã se fazia tarde e a chuva melhorava o clima , entre uma dose e outra , seguia minha viagem de volta ao passado ouvindo as músicas e lembrando personagens de
Exodus , El Cid , O Rei dos Reis , Luzes da Ribalta , A história de Elza ( born free ) , Ben Hur , Álamo , A Noviça Rebelde , Suplício de uma Saudade , Bonequinha de Luxo , Zorba o Grego , Amores Clandestinos , Verão de 42 , Se meu apartamento falasse , Casablanca , Dr . Jivago , E o vento levou , Ao mestre com carinho , O poderoso Chefão , Era uma vez na América , Os canhões de Navarone , A fonte dos desejos , Volta ao mundo em 80 dias , Candelabro Italiano , Dio come te amo , Cantando na chuva , O mágico de Oz , Mary Poppins , A ponte do Rio Kwai , A primeira noite de um homem , Lawrence da Arábia , Os 10 Mandamentos ... etcetera .
Nessa viagem músico - temporo - sentimental , passei por várias estações da minha vida . Em uma delas , o Trem da Saudade ficou mais tempo parado em uma Estação de Areia , e fiquei a lembrar o que aconteceu em um domingo de verão de 1967 . A radiola tocava a música - tema do filme Lawrence da Arábia . Deu um estalo na minha cabeça . O trem resfolegou forte , mas não saiu do lugar . O que era um despretensioso passeio musical por belos momentos do passado , fixou - se em um determinado dia , que modificou , ou melhor , deu - me nova ótica sobre Cinema . E lembrei...
Nésio Moreira , Cacau Teixeira , Eu , Antônio Ribeiro , Fernando Eliziário , Josenewton , Normando e Homero Perazzo , João Antônio e Hildebrando , sempre aos domingos ao meio dia , sentavamos na calçada do oitão da Igreja Matriz de Areia , com um Rádio Phillips de 5 faixas de onda , para escutar o programa Falando de Cinema , produzido e levado ao ar pelo jornalista e radialista Humberto de Campos da Rádio Borborema de Campina Grande .
O programa de Humberto , tinha duração de 1 hora e era dividido em vários blocos . Exatamente ao meio dia , o radialista abria o programa com a belíssima música que Maurice Jarre fez para ser Trilha Sonora do Filme Lawrence da Arábia , onde o ator Peter O'Toole fez uma magistral interpretação . Dava sequência ao programa , lendo cartas dos ouvintes , comentando filmes exibidos ou por exibir no Cine Capitólio e Babilônia e sempre tocando trilhas musicais de filmes famosos .
Para cinéfilos como nós , que formavamos uma espécie de Confraria de cinema , Cine - Clube de Calçada ou ainda Clube do Oitão da Igreja ( analogia com o Clube da Esquina do mineiro Mílton Nascimento ) era um excelente programa dominical para pôr em dia , tudo que se relacionasse à cinema .
Eu possuía um caderno onde anotava o resumo dos filmes que assistia . Anotava ainda minha opinião sobre o elenco , o enredo , a trilha sonora , desempenho dos atores , fotografia etcetera . Esse caderno o tempo não foi misericordioso com ele .
Naquela época , a Itália e a Espanha , investiram pesado no que ficou conhecido como Faroeste Italiano ou Spaghetti Italiano . A posteridade mostrou que em sua grande maioria , as produções eram de qualidade inferior . Claro , também produziram Obras Primas . As músicas e fotografias desses filmes , geralmente eram de primeira qualidade , e salvaram um pouco , muitas mediocridades . Com o passar do tempo , os produtores desses filmes , preocuparam - se mais , com o aspecto comercial , em detrimento à qualidade dessas produções . De bom mesmo , ficaram às Trilhas Sonoras e as Fotografias desses filmes , que além de lindas , eram muito bem conduzidas por Ennio Morricone , Henri Mancini e Hugo Montenegro com suas espetaculares Orquestras . A maioria do nosso grupo gostava desses filmes , por conta da trilha sonora e da fotografia .
Em seu programa dominical , nosso radialista , deitava a lenha sem dó nem piedade em todo e qualquer faroeste Italiano . O pau cantava também no lombo de quem gostasse dos mesmos ! Não economizava adjetivos desabonadores . Toda semana , era um Rosário diferente de palavras " esculhambatórias " . Ninguém escapava do Cutelo de Humberto .
Um dia , resolvemos escrever para o programa argumentando e discordando de uma maneira um tanto grosseira , dizendo que os conhecimentos do locutor sobre cinema ,
" Eram parcos e pouco satisfatórios " e que pelo menos , as trilhas Sonoras e as fotografias , valiam à pena ver e escutar . Que havia bons e maus filmes em todos os gêneros e nacionalidades . Cutucamos a " Onça " com vara curta e ficamos ansiosos pela resposta de nossa carta para o domingo seguinte .
No domingo que se seguiu à carta , chegamos mais cedo na calçada da Igreja . Fizemos uma vaquinha para comprar as 6 pilhas grandes que alimentavam o rádio e ficamos perto do fio Para-Raios da Igreja , que funcionava como uma espécie de Antena para o Mundo . Após ansiosa espera , ouvimos a música - tema de Lawrence da Arábia que abria o programa . Dava prá ouvir também de dentro do estúdio , um arrastar de cadeiras , um pigarrear nervoso e a voz de Humberto surgindo de dentro da música de Maurice Jarre , um pouco diferente da de outros domingos . Indignação ? , Decepção ? , Ressentimento ? , Raiva ? . Ninguém sabia ao certo o que aquela voz expressava naquele domingo . Algo nos dizia que o Programa Falando de Cinema naquele dia , fugiria dos padrões normais . Nós sentíamos que naquele dia , viria Chumbo Grosso , sem trocadilhos , nos Faroestes Italianos que Humberto tanto detestava .
Após os comerciais , sem maiores delongas , o locutor multiplicou os Adjetivos Esculhambatórios sobre os FAKE - FAROESTES . Ao final de cada " Catilinária " , repetia um Bordão que criou para àquele dia :
-E tem gente que gosta !
-E tem gente que gosta !
-E tem gente que gosta !
O tempo destinado às cartas , não era mais que 10 minutos . Nesse dia , nosso radialista reservou mais de meia hora para às cartas . Na verdade , apenas uma única e solitária carta vinda de Areia , foi o alvo da Ira de Humberto . E assim , começou a desfiar toda sua contrariedade e indignação contra os Atrevidos Brejeiros Areienses que ousaram contesta - lo :
-"Areia , terra de Pedro Américo , terra de José Américo de Almeida , terra de vários vultos que se destacaram na história da Cidade , do Estado e do País , tanto na Cultura , como nas Artes , como na Literatura e como na Política . Também é berço de Nésio Moreira , Cacau Teixeira e de José Barbosa de Lucena ( o radialista desconhecia minha origem Itabaianense e me dava Cidadania Areiense , o que muito me orgulhou ) . Por quase meia hora , das Várzeas de Sousa ao Vale do Paraíba , do Pico de Jabre aos Contrafortes da Borborema , de Bonito de Santa Fé à Jacumã , da Baía da Traição à praia de Acaú , todo o Sertão , Brejo , Agreste , Caatinga e Litoral , pelas ondas da Rádio Borborema de Campina Grande , ouviu a Indignação de Humberto com nossa opinião sobre Cinema e sobretudo sobre Faroestes Italianos , que ele considerava 99% , um Sacrilégio contra a Sétima Arte . Depois , em um Tom mais Ameno , deu uma verdadeira aula sobre o que prestava e o que era Lixo , na Sétima Arte . De início , à cada descompostura de Humberto , embolavamos de rir pela calçada , sabendo que éramos notícia em toda Paraíba , uma vez que Humberto era muito ouvido e respeitado em todo Estado . A Televisão nessa época , apenas engatinhava . O Rádio e os Jornais , eram os grandes instrumentos de Comunicação de Massa que existia .
A medida que o tempo passava , o indignado locutor ia tornando - se mais didático , mais paciente , isso no afã de nos livrar de nossa ignorância sobre Cinema . Os risos pararam e começamos a reconhecer que Humberto estava coberto de razão na defesa que fazia das boas Produções Cinematográficas . Após esse programa , fiquei convencido de que qualquer filme , obra de arte ou qualquer outra produção que não preste , inclusive idéias , o destino deve ser a LATA DO LIXO .
Esse episódio , ocorreu em 1967 em Areia , no Oitão da Igreja Matriz e eu tinha 15 anos de idade . Até hoje , não conheço pessoalmente Humberto de Campos . Nem mesmo sei , se ele está vivo . Se estiver , peço ao Poeta Campino - Itabaianense , Jessier Quirino , que leve ao Radialista , o meu desejo de conhece - lo bem como agradecer - lhe pela visão que passei a ter sobre Cinema e Arte de maneira geral , após a Reprimenda Pública via Rádio Borborema de Campina Grande .
P . S . - O amigo Jessier Quirino ficou de marcar um encontro nosso em Campina Grande . Infelizmente , três ou quatro meses após meu pedido , Humberto veio à falecer e não tive o prazer de conhece - lo , pedir desculpas , agradecer à Aula e dar boas risadas relembrando o episódio .
EM BAIXO , FOTOS ILUSTRATIVAS
JOSÉ BARBOSA DE LUCENA
( DR . DEDÉ )
João Pessoa , 26 de abril de 2024 .