domingo, maio 26, 2024

HOSPITAL SÃO VICENTE DE PAULO EM ITABAIANA - PB.

O Hospital São Vicente de Paulo atendeu à ITABAIANA e cerca de 15 Cidades vizinhas durante 66 anos , desde sua inauguração em 1949 até fechar suas portas em outubro de 2015 . Fui plantonista nesse Hospital de 1973 a 1976 como estudante e de 1977 a 2015 como médico . Quatro anos como estudante e 38 como médico , num total de 42 anos de minha vida . Estive presente em 63% da história da vida desse Hospital . Muita coisa vi e participei . Dessa história que vou contar , fui participante .
No domingo 19 de maio de 2024 , assistindo ao FANTÁSTICO , me chamou atenção além da catástrofe do Rio Grande do Sul outra reportagem que seria apresentada pelo programa . A matéria jornalística dava conta de uma GESTAÇÃO ECTÓPICA , ou seja , FORA DO ÚTERO , na CAVIDADE ABDOMINAL .
Voltei no tempo até uma longínqua noite de uma quarta feira , 07 de novembro de 1979 . Recém formado , eu estava de plantão 24 horas naquele dia no Hospital . O plantão sempre era bastante movimentado , pois atendiamos a 15 Cidades das redondezas e os casos variavam de diarréias em crianças e idosos , à partos normais ou cesareanas passando por amputações traumáticas em trabalhadores que operavam máquinas de desfibrar agave . Em 1973 comecei a dar plantão no hospital como estudante e dentre outras coisas , o Dr . Eduardo Paiva ( In Memorian ) me ensinou a fazer raque anestesia . Tive boas noções de cirurgia geral com Dr . Aglair e Dr . Pires . Por conta do grande volume de partos e cesáreas que havia , adquiri bons conhecimentos sobre Obstetrícia . Tive um bom aprendizado no Hospital São Vicente de Paulo . Quando terminei o curso , a pedido de Dr . Aglair , fui logo contratado como plantonista , e iniciei os primeiros passos na minha profissão .
Era uma época difícil . Havia poucos especialistas . Anestesistas por exemplo , existiam poucos e se concentravam nas grandes cidades . Um hospital pequeno do interior , não podia se dar ao luxo de ter em seus quadros , um anestesista 24 horas por dia , os 7 dias da semana . Um anestesista era contratado para vir um ou dois dias na semana para fazer às anestesias , para as cirurgias eletivas . Ao contratar outros profissionais plantonistas , a direção do hospital dava preferência , àqueles profissionais que de tudo soubessem um pouco , inclusive fazer raque anestesia para uma emergência obstétrica . Eu atendia esse requisito .
A paciente Marilene Araújo de Oliveira , conhecida como Branca , estava na 38 ° ou 39° semana de gestação . Havia me procurado poucos dias antes para fazer sua 3° cesárea e também sua laqueadura de trompas . Eu havia feito as outras duas cesáreas . Marquei para fazer a cirurgia , no sábado dia 10 de novembro , quando ela estaria completando 39 semanas e teríamos um anestesista na casa . A paciente era irmã de Manezinho Garçom , figura muito conhecida e estimada na cidade .
Entre 9 e 10 horas da noite , o plantão estava mais calmo e eu descansava no repouso médico , quando chega Leninha Parteira dizendo que Branca havia chegado referindo um REBULIÇO ESTRANHO no abdômen . Fui até a sala de partos e examinei Branca . A paciente não sentia dor , não havia dilatação de colo uterino , os sinais vitais da paciente estavam excelentes . Como não existia sonar obstétrico , fiz ausculta dos batimentos cardiofetais com um instrumento de madeira chamado de Pinard Obstétrico . Batimentos um pouco acelerados , mas nos limites da normalidade . Observei que os movimentos que a gestante chamou de REBULIÇO ESTRANHO , existiam e suspeitei de uma provável ruptura uterina uma vez que havia duas cesáreas anteriores e que podiam deixar as paredes uterinas frágeis podendo romper à uma contração mais forte . Já tinha visto dois casos anteriores . Na dúvida , indiquei rapidamente a cesárea de urgência . Não dava para esperar para o sábado . Com mais ou menos 15 minutos a paciente já estava na sala , fiz a raque anestesia e iniciei a cirurgia . Meu medo era que na rutura uterina , a bolsa com o líquido amniótico também se rompesse e junto com o sangue da provável ruptura , AFOGASSE o feto ainda na cavidade abdominal . O REBULIÇO DA CRIANÇA me garantia que ele ainda estava vivo . Daí minha pressa . Era uma corrida contra o tempo . Nessa noite não sabia , mas depois senti , que além das três auxiliares presentes na sala , tive outra ajuda . Depois revelo quem foi !
Depois de dois ou três minutos após iniciar a cirurgia , cheguei à cavidade abdominal e lá estava como eu supunha , a bolsa das águas íntegras e fora do útero indicando uma provável ruptura uterina . A criança estava viva , e fazendo o mesmo REBULIÇO . Rompi a bolsa que estava muito mais resistente que o normal ( a resistência da membrana da bolsa , provavelmente impediu a ruptura da mesma , evitando a morte da criança ) . Retirei a criança aos berros , já MIJANDO na minha cara e muito bem de saúde , não precisando de maiores cuidados . Entreguei a criança a Leninha Parteira que fez os procedimentos necessários e a levou para o berçário aquecido . Feito isso , limpei e aspirei o líquido da cavidade abdominal , para ver onde tinha sido a rutura uterina , e NÃO encontrei nenhum ÚTERO ROTO , NEM GRÁVIDO . O útero estava lá , bem quietinho no canto dele , parecendo uma pera , e olhando para mim , como estivesse DIZENDO : - " O que estava aí fora , nem foi meu inquilino , nem me pagou aluguel nesses 9 meses não ! "
Fiquei atônito com a situação . Para piorar as coisas , a Placenta mostrou toda sua exuberância , com seus " alicerces " muito bem fincados em 60% do Epiplom ( um tecido bem vascularizado que está aderido e dá sustentação a vários órgãos abdominais ) e que deve ter sido responsável pela nutrição da placenta e do feto pela sua grande vascularização e 40% aderida à parede posterior do abdômen no lado esquerdo , prendendo o cólon descendente ( o intestino grosso ) já perto do Reto , para aumentar mais ainda minha preocupação .
Eu nunca tinha visto algo semelhante . A literatura médica no Livro de Obstetrícia de Resende , com mais de 700 páginas , dizia que a ocorrência era raríssima no mundo e que a morte materno - fetal nesses casos era altíssima . Não ensinava como proceder em um caso desse . Não relatava casos no Brasil .
Eu teria que ser ousado , e ao mesmo tempo ser prudente e ter bom senso . O tempo de duração de uma raque anestesia , variava entre uma hora e meia e duas horas . A criança estava salva , faltava a mãe . Respirei fundo e pedi a DEUS que fosse a minha LUZ , naquele momento crucial da minha profissão que iniciará dois anos atrás . Um insucesso no início da carreira , mesmo com todas às atenuantes , seria fatal para a paciente e para minha profissão .
Com muita cautela fui desprendendo a Placenta do Epiplom , com muito cuidado para não deixar sangramentos , uma vez que o hospital não tinha bisturi elétrico , que fazia uma melhor hemostasia , cauterizando os vasos . Consegui com muita luta , retirar 60% da placenta que estava aderida ao Epiplom . Comecei a liberar os 40% restantes , que estava aderida na parede posterior do abdômen prendendo o Cólon descendente em sua porção quase final ( intestino grosso perto do Reto ) . Na primeira tentativa de descolar a placenta nessa região , percebi a grande probabilidade de perfurar o Intestino grosso se continuasse a tentar . Os danos causados com essa tentativa seriam muito graves e possivelmente fatais , uma vez que fezes contaminariam a cavidade abdominal
Decidi limpar a cavidade abdominal , coloquei dois drenos laterais e fechei a cavidade . No prontuário prescrevi uma boa hidratação , vitaminas e analgésicos no soro além de uma boa cobertura com antibióticos para prevenir possíveis infecções . A paciente saiu da sala muito bem . Minhas preocupações estavam apenas começando , uma vez que na impossibilidade técnica e de tempo , deixei 40% da placenta na cavidade abdominal . Queria ganhar tempo , para conversar com algum colega mais experiente e traçarmos um plano para resolver a situação , inclusive fazendo uma nova cirurgia .
Em 1979 , Dr Aglair era o Prefeito de Itabaiana e a residência oficial do prefeito , era na Granja do Aviário , hoje é sede do Batalhão da Polícia Militar . Além de ter me ensinado os segredos da cirurgia , Aglair era meu amigo . Fui até a Granja contar o ocorrido e pedir orientação de como conduzir o caso . Aglair me disse que nunca tinha visto caso semelhante e se tivesse sido com ele faria a mesma coisa . Foi comigo ao hospital observar a paciente .
No outro dia contactámos alguns professores de ginecologia e obstetrícia e a resposta foi a mesma : Pouco se sabia sobre àquela patologia . Optei por acompanhar , observar a evolução e vigilância constante . Branca evoluiu muito bem . No 5° dia retirei os dois drenos e no 8° dia retirei os pontos dei alta hospitalar recomendando que qualquer anormalidade me fosse comunicada . O tempo passou , Branca evoluiu muito bem , sem sequelas . Por alguns anos sempre me procurou quando tinha algum problema de saúde na família . Nunca queixou - se de nenhum problema decorrente da cirurgia . A criança também evoluiu muito bem . Quase trinta anos depois do episódio , reencontro Branca .
Nesse período , procurei saber se tinha avido certo ou errado . Nunca tive resposta . Até que um dia , 20 anos depois , já morando em João Pessoa , acompanhei minha sogra juntamente com minha esposa , em uma consulta ginecológica com um ex - professor meu . No consultório fiquei sabendo , que a paciente anterior à minha sogra teve uma Gravidez Abdominal há mais ou menos dois anos atrás e teve graves problemas relacionados ao caso . Acompanhei juntamente com minha esposa , a consulta de minha sogra . Após o atendimento , me identifiquei como médico e ex aluno do Ginecologista e perguntei sobre o caso de sua paciente . Ele descreveu o caso e disse que na tentativa de liberar a placenta do intestino , perfurou o mesmo o que acarretou os graves problemas que aconteceram sua paciente . Eu disse ao médico , que há mais ou menos vinte anos tinha pego um caso igual e relatei que na impossibilidade de retirar toda a placenta , deixei 40% dentro do abdômen e que achava que o organismo da paciente tinha reabsorvido a mesma , uma vez que nunca apresentou problemas .
Pouco tempo depois , a Rede Globo em um FANTÁSTICO , fez a 1° reportagem sobre esse assunto dizendo que algumas Senhoras com 70 ou 80 anos , com o advento das Ultrassonografias abdominais descobriram no Rio Grande do Sul e em Olinda fetos mumificados com idade gestacional provável entre 4 e 5 meses provavelmente gerados na idade fértil das pacientes , e que passaram despercebidas . O organismo encapsulou e preservou os fetos mortos na cavidade abdominal uma vez que não tinham por onde sair .
Há 8 ou 10 anos atrás aqui na Paraíba houve uma gestação desse tipo diagnosticada por um obstetra do Hospital Universitário e que teve ampla publicidade . O obstetra acompanhou a gestação até o 7° ou 8° mês , quando por precaução fez uma cesárea para preservar possíveis riscos para o feto .
Como disse antes , encontrei Branca uns 30 anos depois , com uma ultrassonografia evidenciando um fibroma uterino e perguntando se eu faria a Histerectomia . Acho que foi em 2010 . Eu tinha me aposentado da Frei Damião onde atuei como obstetra , 16 anos . O Hospital São Vicente de Paulo , já estava em grave crise financeira e não fazia mais cirurgias de grande porte . Disse a Branca , que por conta de meus problemas cardíacos e por não ter mais onde operar , estava só no PSF de Cariatá , mas ia encaminha - lá ao Cirurgião Itabaianense , Dr . Gildo Romero , naturalmente relatando o acontecido com ela . Gildo fez a cirurgia e para meu espanto , disse que não tinha Aderências significativas no abdômen de Branca . Nesse momento , tive a certeza de que o organismo da paciente , reabsorveu o restante da placenta sem deixar marcas ou cicatrizes significativas .
Naquele dia 07 de novembro de 1979 , o Hospital não dispunha de Aparelho de Ultrassonografia , Tomógrafo , Sonar Obstétrico , Anestesista , Equipe Auxiliar Compatível com a gravidade do caso , Monitor Cardíaco , nem Especialista em Obstetrícia que tivesse noção de como lidar com o caso . Na pequena sala de Cirurgia de 25 metros quadrados tínhamos como instrumentos de atendimento , uma mesa de Cirurgia , uma Maca , um Tubo de Oxigênio , um Aparelho de Pressão , Roupas Esterilizadas , Instrumentos Cirúrgicos esterilizados , um Armário com Medicação injetável de urgência . Como material humano estavam presentes na sala : A paciente e seu feto , Eu , a enfermeira Lurdes de Bastinha que me auxiliou , a enfermeira Odete que auxiliou na instrumentação da cirurgia e a Parteira Leninha que ficou circulando na sala . No dia ( noite, no caso ) não tinha Anestesista nem Pediatra .
Pensando bem , eu tive um AUXILIAR que não vi , mas senti SUA PRESENÇA a guiar o bisturi na minha mão e me fez prudente na hora de não avançar com a retirada do resto da placenta , deixando que a própria natureza fizesse isso . ESSA PRESENÇA invisível , mas sentida , passou a me acompanhar nas mais de 10.000 cirurgias que fiz ao longo da vida e que tiveram um final feliz .
O dia 11 de novembro de 1979 foi um domingo , 4 dias depois desse evento . Completei 28 anos de idade e 2 anos de profissão .
Não sei a idade de Branca . Mas Hélio André de Oliveira , hoje funcionário do Hospital Regional de Itabaiana , eu sei ! . Vai completar 45 anos no dia 07 de novembro de 2024 .
É uma boa história com Final Feliz , não ? Pessoalmente , considero um MILAGRE , ONDE DEUS MISERICORDIOSO , MOSTROU TODA SUA GRAÇA , PODER , E GLÓRIA
Abaixo Fotografias ilustrativas do caso .
JOSÉ BARBOSA DE LUCENA
( DR . DEDÉ )
João Pessoa , 25 de maio de 2024 .