A pior travessia...
O processo de impeachment da presidente será a via-crúcis de Dilma Russeff. Para o País, representa uma luz no fim do túnel da crise, a oportunidade para que seja construída uma união nacional para a reversão de expectativas e a retomada da credibilidade...
por: Sérgio Pardellas e Débora Bergamasco...
O relógio
acomodado na parede do gabinete presidencial marcava 18h33 quando o
ministro da Casa Civil, Jaques Wagner, um dos poucos integrantes do
primeiro escalão autorizados a girar a maçaneta da sala da presidente
Dilma Rousseff sem precisar bater à porta, tomou fôlego para enunciar o
mais funesto comunicado recebido por ela desde a posse. “Presidente,
começou o impeachment”, afirmou Wagner, em tom solene. Dilma já havia
sido alertada sobre o risco do infortúnio horas antes pelo telefone.
Mesmo assim, ao receber a confirmação oficial da decisão do presidente
da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), a presidente respirou fundo, como se
prenunciasse dias de trevas no horizonte. De fato, uma jornada
tranqüila não lhe aguarda. A presidente sabe que enfrentará, nos
próximos meses, a sua pior travessia. Talvez a derradeira. Para os
brasileiros, o desenlace desse processo pode representar uma espécie de
recomeço.
O Brasil amarga hoje os mais calamitosos
índices em duas décadas. A paralisia do País já afeta todos os setores
da economia. Na última semana, soube-se que a recessão está se
transformando em uma depressão econômica – fato inédito desde os anos de
1930 e 1931 – em razão da profunda contração da demanda interna. Por
isso, o processo de impeachment é uma luz a se insinuar no fim do túnel
em meio ao breu. Para empresários, líderes políticos – até do próprio PT
– e a maioria da população a saída de Dilma do poder significa a
oportunidade real de o Brasil escapar do atoleiro em que se encontra
rumo ao resgate da credibilidade, à retomada da confiança e à construção
de uma unidade nacional. Todos acreditam que Dilma perdeu a condição de
protagonizar uma transição sem traumas em direção à superação da crise.
Só o afastamento da presidente, atestam as mais recentes pesquisas de
opinião, teria o condão de arrefecer a tensão e reverter as expectativas
– hoje as mais tenebrosas. Viveremos, portanto, nos próximos meses um
momento histórico para o País. Dizia o poeta, escritor e abolicionista
dos Estados Unidos, James Russel Lowell, primeiro editor da revista
literária The Atlantic Monthly: “Há momentos decisivos. Para a Pátria,
para o lar... Quando a escolha é necessária e há verdade a sustentar,
grandes causas e conflitos pedem nobres campeões. E a batalha hoje
vencida valerá por gerações”. Encontramo-nos exatamente nesse estágio
descrito por Lowell. “Esse impasse e a incapacidade que a presidente
Dilma Rousseff tem demonstrado de tomar a iniciativa e inspirar
confiança em quem trabalha, em quem produz, em quem investe está levando
o Brasil a mergulhar em uma crise que já não é mais econômica e moral
apenas. É uma crise social, de profundidade que nós não havíamos vivido
ainda. É preciso que haja uma decisão”, afirmou o presidente do PSDB,
senador Aécio Neves.
Ansiosa por um desfecho da maior crise da
história recente, a população já deu demonstrações de que não se furtará
a ocupar as principais avenidas do País. Na semana passada, enquanto o
mercado reagia com raro otimismo ao simples sinal verde para o processo
do impeachment, líderes de movimentos de rua já planejavam as próximas
manifestações. No próximo dia 13, um domingo, o MBL e o Vem para Rua
esperam reunir centenas de pessoas nas principais capitais do País em
favor do afastamento da presidente. A concentração será no vão do MASP,
na Avenida Paulista, em São Paulo. “É um espécie de esquenta para uma
grande manifestação que ocorrerá no início do próximo ano. O objetivo é
não deixar a chama se apagar”, afirmou Kim Kataguiri, do MBL. A data da
mega mobilização de 2016 ainda está em estudo, mas a intenção é
coincidir com a retomada dos trabalhos do Congresso. Principalmente, da
Comissão Especial designada para avaliar o pedido de impedimento da
presidente petista.
O ANÚNCIO E A REAÇÃO
Ás 18h30 da quarta-feira 2, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha,
comunicou o acolhimento do pedido de impeachment contra Dilma.
Ato contínuo, a tropa de choque do governo no Congresso
tentou desqualificar o ato com base em sofismas...
Pelo rito estabelecido ao processo, tão
logo instalada a Comissão Especial, com 65 membros, respeitando a
proporcionalidade dos partidos na Casa, Dilma será notificada e terá
prazo de até 10 sessões para se defender. Em seguida, o colegiado por
meio de um relator terá de emitir um parecer em cinco sessões. Publicado
o relatório, em 48 horas será votado pelo plenário da Câmara. Se dois
terços dos 513 deputados forem favoráveis ao afastamento, a chefe do
Executivo é afastada do cargo por 180 dias até o julgamento final pelo
Senado. No final da semana, o Congresso discutia a convocação ou não dos
parlamentares no recesso legislativo. Inicialmente, a oposição,
interessada em conferir celeridade ao impeachment, trabalhava pela
convocação. Ao tomar conhecimento da intenção do governo de mobilizar
sua tropa de choque na Câmara para arquivar de maneira rápida o pedido
de afastamento na Comissão Especial, os oposicionistas recuaram. Se a
oposição vencer a nova contenda, a tendência será pela retomada dos
trabalhos apenas em fevereiro, quando se inicia oficialmente o ano
legislativo. A oposição aposta que a popularidade de Dilma tende a se
deteriorar até lá, com o aprofundamento da crise, o que pavimentará o
caminho para apeá-la do poder.
Antes, porém, de ser alcançada a maioria
numérica de dois terços para o afastamento de Dilma, personalidades
políticas de todos os matizes e líderes empresariais entendem ser
imperativo a celebração de um pacto nacional. Só um grande acordo poderá
abrir caminho para as profundas transformações que o Brasil necessita
para sair da crise. Ao que parece, as tratativas já estão em curso.
Rachado em diversos momentos ao longo do ano, o PSDB produziu consenso
numa velocidade recorde, tão logo foi anunciado o acolhimento do pedido
de impeachment por Eduardo Cunha. Consultados, tanto Aécio e Serra, nos
bastidores, admitiram uma convergência em torno do vice-presidente
Michel Temer, cujo discurso oportunamente entoado no final a última
semana soa como música aos ouvidos de todos os atores políticos
interessados numa inflexão.“Espero que o País saia pacificado ao fim do
processo de impeachment”, afirmou o vice-presidente.
A SOLUÇÃO
Em jantar há duas semanas, os tucanos Aécio Neves e Fernando Henrique Cardoso
discutiram alternativas políticas para pôr fim à paralisia do País. Para eles,
e a maioria da população que já organiza manifestações pelo impeachment
para os próximos dias, a saída de Dilma é inevitável
Num outro gesto louvável e adequado ao
momento, o próprio também antecipou, na última semana, que caso seja
ungido para conduzir o processo de união nacional não terá apego ao
cargo, abrindo mão de concorrer à reeleição em 2018. Dessa forma,
deixaria a cadeira após a consumação do pacto nacional. O chamado PT
lulista é outro a embarcar na “solução Temer”. Para o grupo, a única
chance de êxito eleitoral em 2018 passaria pela conversão de Lula à
oposição de um governo pós-Dilma. Com a atual presidente fora do jogo, o
ex-presidente poderia encampar a defesa de seu legado, recuperando a
musculatura política perdida nos últimos anos. Hoje, as pesquisas em
poder do PT são avassaladoras. Segundo levantamentos internos do
partido, no ABC paulista, berço do petismo, 82% das pessoas se
recusariam a votar num candidato indicado por Dilma nas eleições
municipais de 2016 e presidenciais de 2018. E 67% não seguiriam a
orientação de Lula. O último Datafolha já atestava a débâcle do petista.
Em todas as pesquisas para um eventual segundo turno, Lula, com 47% de
rejeição, perderia no embate direto para todos os adversários: Marina
Silva, Aécio Neves e Geraldo Alckmin. Não à toa, o ex-presidente assume
agora um discurso ambivalente. Na última semana, ao mesmo tempo em que
classificou de “loucura e insanidade” a iniciativa de Cunha, lamentou o
fato de o Brasil parecer um “trem descarrilado”. “A gente precisa
colocar o vagão no trilho”, afirmou, numa retórica que embute
indiretamente uma crítica ao governo Dilma.
Se havia alguma dúvida da veracidade desta
tese, ela foi dirimida nos últimos dias quando o PT emitiu uma nota,
subscrita pelo presidente da legenda, Rui Falcão. No documento, Falcão
anunciou de qual lado da trincheira os três petistas integrantes do
Conselho de Ética – Zé Geraldo (PT-PA), Valmir Prascidelli (PT-SP) e Leo
de Brito (PT-AC) – se posicionariam. No caso, contra Eduardo Cunha. A
postura do PT foi decisiva para a detonação do impeachment. Quem conhece
os meandros da legenda sabe que não há hipótese de o partido ter
colocado em marcha uma decisão tão importante sem o consentimento do seu
líder máximo, o ex-presidente Lula. Mesmo assim, o partido lança mão de
táticas diversionistas. No Congresso, deputados do PT reagiram com
irritação ao anúncio de Cunha. Escalados para fazer a defesa jurídica da
presidente Dilma, os deputados Wadih Damous (PT-RJ) e Paulo Pimenta
(PT-RS) disseram que o partido já esperava uma retaliação. “Temos
absoluta convicção de que esta atitude é um ato de revanchismo. Esse é o
ponto culminante de um processo de chantagem que o governo e o Brasil
vinham sendo submetidos”, disse Pimenta.
Desqualificar o acolhimento do pedido de
impeachment faz parte da estratégia do governo de disseminar um sofisma:
o de que Cunha não tinha legitimidade para fazê-lo, pois encontra-se
envolvido em casos comprovados de corrupção, e tomou a decisão movido
pelo pecado da vingança. Na verdade, a intenção do Planalto é conquistar
a simpatia de setores da opinião pública criando uma falsa disputa
entre o bem e mal, onde o “bem” seria encarnado pela presidente da
República e o “mal” personificado na figura de Eduardo Cunha. O
estratagema governista esconde o principal: o presidente da Câmara não é
mais o senhor do impeachment. Como se apertasse o botão para o
funcionamento de uma engrenagem, Cunha investido de suas funções
constitucionais apenas atestou a admissibilidade do pedido formulado
pelos juristas Hélio Bicudo e Miguel Reale Jr. Mas quem julgará Dilma é a
Câmara e o Senado. Agora, o impeachment ganha uma dinâmica própria e,
ao fim e ao cabo, a decisão de abrir ou não o processo estará nas mãos
de 513 deputados. E, de fato, há provas de que a presidente cometeu
crimes de responsabilidade com as pedaladas fiscais e os decretos não
numerados. Ainda pairam sobre ela suspeitas de financiamento ilegal de
suas campanhas com caixa dois e de sua participação na malfadada compra
da refinaria de Pasadena.
ATÉ ELE
Para Lula e o PT lulista, personificado por Rui Falcão, a queda de
Dilma pode permitir a sua recuperação política até 2018
Apesar de adotar a retórica do Fla-Flu
político, conveniente para ele no momento, o governo traça estratégias
bem mais pragmáticas no esforço para livrar a presidente do impeachment.
Já está claro, por exemplo, que o Planalto tentará transformar o STF,
foro que chegou a suspender o rito inicial do impedimento da presidente
proposto por Cunha há dois meses, no seu principal dique de proteção. Na
quinta-feira 3, foram apresentadas três ações ao tribunal. No mesmo
dia, no entanto, duas delas foram analisadas e consideradas
improcedentes pelos ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes. Mesmo
assim, os governistas prometem ingressar com outros recursos ao Supremo.
Não descartam, inclusive, questionar até mesmo critérios adotados pelo
presidente da Câmara para distribuir entre os partidos as vagas na
Comissão responsável por analisar o pedido de impeachment.
Além de autorizar investidas na seara
jurídica, Dilma convocou mais de 20 ministros para participar de uma
reunião no Palácio do Planalto na quinta-feira 3. O recado dela foi
explícito: “Não podemos dar a sensação de que o País parou”, como se
isso fosse possível. No encontro, foi anunciado que ela retomará sua
agenda de viagens pelo Brasil. No périplo, estão previstas inaugurações
de obras com participação de ministros dos respectivos estados. Mas a
composição ministerial é tão heterogênea e desconexa que quem participou
da conversa saiu com a sensação de que ela terá uma missão árdua para
manter o time coeso. Na sexta-feira 4, o governo sofreu a mais dura
baixa desde o início da crise. Ministro mais próximo de Michel Temer,
Eliseu Padilha, da Aviação Civil, entregou o cargo. A saída de Padilha
acende o sinal de alerta no Planalto. Para auxiliares da presidente, o
gesto é o sinal mais claro de um irremediável afastamento do vice Michel
Temer em relação a presidente e pode significar o princípio de uma
debandada do PMDB, partido fiel da balança na matemática do impeachment.
REVELAÇÃO
Na edição 2393, de 14 de outubro, ISTOÉ mostrou as pedaladas de
Dilma em 2015. Reportagem fundamentou pedido de impeachment
Na edição 2393, de 14 de outubro, ISTOÉ mostrou as pedaladas de
Dilma em 2015. Reportagem fundamentou pedido de impeachment
Em seu livro “Momentos decisivos da
história do País”, o filósofo Antonio Paim descreve três períodos
cruciais da nossa história em que poderíamos ter trilhado caminhos
distintos. O primeiro foi o enfraquecimento do empreendimento açucareiro
no início da era colonial, quando o Brasil possuía uma economia mais
pujante que a dos Estados Unidos. O segundo foi o sufocamento das
iniciativas liberais depois da proclamação da República, cedendo lugar
ao patrimonialismo. E o último entre os anos 30 e 90, quando os
obstáculos ao capitalismo levaram o País ao predomínio econômico social e
político da burocracia estatal. Para Paim, a ascensão do PT ao poder
serviu à manutenção do patrimonialismo tradicional e o loteamento do
Estado se deu através da cooptação da base parlamentar necessária para a
manutenção e perpetuação do poder. Para piorar, o chamado
presidencialismo de coalizão, sistema que deveria permitir a
governabilidade, fracassou totalmente no governo Dilma. “No primeiro
mandato, a distribuição de cargos não correspondia à base de sustentação
no Congresso. No início do segundo mandato, a prática desandou
totalmente, por uma mistura de incompetência política, crise econômica e
efeitos colaterais da Operação Lava Jato”, afirmou o sociólogo e mestre
em ciência política, Murillo de Aragão. Para ele, a fragmentação do
Congresso, extremamente prejudicial ao sistema partidário, gera a falta
de lideranças capazes de construir consensos. A saída seria a construção
de uma nova maioria fundamentada em políticas públicas claras e
reformas estruturais. “O ponto inicial de uma nova maioria poderia
partir de um programa de governo tecido com apoio dos partidos no
Congresso”, prega. Apesar de, em muitos casos, apontarem saídas
diversas, empresários, políticos e integrantes da sociedade civil
convergem num ponto crucial. Mesmo que a travessia seja gradual é
necessário buscar caminhos para sairmos do labirinto em que nos
encontramos. “O ambiente político é de tensão. Precisamos desenvolver a
perspectiva de um novo ciclo de crescimento no Brasil”, prega a
presidente da TAM, Claudia Sender. A busca da racionalidade política e
institucional do País é fator imprescindível para que a economia volte a
ter equilíbrio e a confiança da população seja recuperada. Está em
jogo, nos próximos meses, o destino da atual e das próximas gerações.
Fotos: LOIC VENANCE/AFP JBatista/Camara dos
Deputados; Michel Filho/ Agência O Globo, Gabriel Soares/Agência O
Globo; Romério Cunha, DIDA SAMPAIO/ESTADÃO; Ed Ferreira/ Ag. O Globo